Diário afetivo de um homem negro

Por Davi Nunes

DAVI DOR                       Ilustra: Jurandir Rita

Dentro do espaço de um ano e pouco, fiz duas mulheres que amei sofrerem, uma, depois a outra. Foi assim que ocorreu. Agora ando me perguntando, dentro dessa extensão de tempo que tenho nessa terra e com as relações afetivas que tive nessa trajetória, qual a razão delas nunca darem certo além do arroubo da paixão e de projeções frustradas que desaguam sempre no fim sofrido, principalmente para as minhas companheiras, falo aqui de mulheres negras. Já botei a culpa na pobreza, na subjetividade quebradiça de ser um homem negro no país hostil, nessa diáspora de desespero e racismo. Mas é muito fácil jogar para baixo do tapete a poeira da dor e angústia que causei. Hoje, eu cheguei à conclusão que se isso ocorre é simplesmente porque eu sou um homem negro desajustado. Um sujeito apartado de si, dos preceitos mais básicos da ancestralidade; um ser que adquiriu durante um trajeto de vida fórmulas para se fazer amado, para conquistar corações, mas que ao mesmo tempo é egoísta o suficiente e cheio de vícios da época que causa sempre sofrimento na maioria das companheiras.

Enquanto escrevo isso, sei que tem uma mulher negra sofrendo por ações que cometi, enquanto escrevo isso sei que outra mulher negra se recuperou a pouco de coisas que fiz, enquanto escrevo isso pela primeira vez me vejo dentro desse sistema doentio como um agente de opressão. É o que ocorre. “Quem és tu, homem negro? Quem és tu, poeta? Quem és tu, caracol encolhido na lama de suas lágrimas de dor?” Foda-se! Grita uma voz assustadora na minha mente agora. “Como você quer ter uma família, um amor afrocentrado se a sua alteridade à mulher negra não se alargou o suficiente para você ser companheiro de uma rainha? Como você quer ter isso tudo se ainda o machismo lhe atrofia? Se isso torna a sua humanidade enferma e os faz vil.”

Eu fissurei o coração de uma mulher negra em luta mais de uma vez, destruí amor, me apequenei quando pensei que era grande, me apequenei quando pensei que a minha angústia de negro drama era maior, que o meu desespero era essencial, que a minha luta era a de primeira ordem e deveria ser seguido pelas companheiras que tive em detrimento de suas dores e batalhas. Deveria ter aprendido com quem me deu afeto, com quem projetou junto comigo um futuro.

Fui um agente reprodutor de ações que fizeram a minha bisavó, a minha vó, a minha mãe, as mulheres das minhas comunidades, companheiras e todas as ancestrais que me deram a existência sofrerem com os homens durante a história de violência nessa diáspora de dor. Quando somente deveria ter recebido o lastro do amor como um libelo de luta e feito altar para ajudar a restaurar a realeza das mulheres que amei e que estão sempre em luta.

Desde cedo descobri que o afeto e o amor entre nós, negros e negras, são difíceis de construir, imerso no horror, brutalidade e despersonalização que vivemos nessa terra suspensa. Entendia que é um movimento revolucionário, pois sempre nos foi negado, ou obliterado; de certa forma quebrava o sistema. Pensava. Mas aprendi com uma companheira que – para além disso –  é necessário não só construir relações assentadas em solos movediços de idealização afros, mas nos colocar no lado das mulheres negras efetivamente, ser auxiliar em suas batalhas mais íntimas, como das mais estruturais para se construir relações positivas, criar o quilombo íntimo, resistir, lutar e tecer companheirismo.

DAVI DOR 2

Ilustra: Jurandir Rita

Agora, tudo é desassossego e banzo; é necessário buscar a cura. Não sei se há fórmulas, imagino que deva ser mergulhar com humildade na raiz matrilinear da ancestralidade negra, e para isso é imperativo ser merecedor. Faz-se indispensável conquistar esse axé para me livrar do arquétipo desajustado do homem que me tornei nessa babilônia de horrores. Renascer e me tornar um ser que posso ser digno de ver nos olhos da mulher que magoei e fiz sofrer (antes e agora) mais uma vez, um brilho de orgulho, admiração e amor.

Davi Nunes é colaborador do portal SoteroPreta, mestrando no Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem- PPGEL/UNEB, poeta, contista e escritor de livro Infantil

 

Publicado por

Davi Nunes

Davi Nunes é um poeta, contista, roteirista soteropolitano, publicou os livros Bucala: a pequena princesa do Quilombo do Cabula (2019), Zanga (2018) e Banzo (2020). É graduado em letras Vernáculas, Mestre em Estudo de Linguagens pela Universidade do Estado da Bahia-UNEB e faz doutorado em Literatura, Cultura e Contemporaneidade na PUC-RIO.

3 comentários em “Diário afetivo de um homem negro”

  1. Achei incrível. Vi alguns relacionamentos meus aqui. Hoens negros, machistas, egoístas, vaidosos!! Infelizmente, é o que tem me aparecido pela frente e o tenho de deixar para trás. É uma pena que poucos façam essa reflexão.

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