No próprio limite: o “Banzo” experimental de Davi Nunes

Por Matheus Lima

Banzo (2020), de Davi Nunes, é forte síntese (“núcleo atômico”) de experimentações — o que se expressa em seu próprio título. É importante levar em conta primeiro que o próprio conceito de “banzo” é experimentado junto à sua poética; quer dizer, o “banzo”, que enuncia os poemas em seu arranjo, é também definido, disposto lado a lado, em inserções compreendidas pela montagem, aos demais poemas. 

O que o banzo é: está no itálico de sua definição, acompanhada de citações e referências teóricas, e está nos poemas, encenado e atravessado pelas imagens que faz explodir.  

A dobra experimental entre o conceitual e o poético é também sua abertura crítica: o livro nos convida a lê-lo em seus próprios termos. Esses termos são tanto oferecidos pelo autor, desde os trechos teóricos, a nota sobre a influência de Jean Michel Basquiat e Aimé Césaire, até a composição dos blocos (“Reverências”, “Heroicas”, “Sombras”), quanto por suas condensadas imagens poéticas, sempre à beira de serem feitas operadores teóricos (para além do “banzo”, temos “melanodérmicos”, “dengo”, “brucutu”). Essa autodeterminação que o texto encontra para si não o encerra a um horizonte determinado, mas antes faz estourar o tambórico e o pictórico que tão genialmente o compõem. 

É também por esses dois traços que a experimentação se espirala. O tambórico já ressoa na opção césaireana pela reincidência de proparoxítonas, que marcam os dois tempos átonos à sequência da tônica para fazer a palavra ribombar e se espiralar. Também as imagens (p. ex. do “brucutu”, que como no Novo Dicionário Banto do Brasil, de Nei Lopes, nomeia tanto o monstruoso quanto o policial, os quais inegavelmente se identificam) apresentam-se em reincidência, como a marcar um elemento traumático, isto é, que sempre volta, quanto um elemento de ritmo imagético, em que sua recorrência faz emergir também o som (da palavra) e a onda que a imagem percorre para emergir em suas aparições, vibrando a cada reaparição; ressoando. 

O ritmo encontra expressão experimental por meio da variação formal dos poemas: há os poemas em dístico (“Gênio ancestral”, “Terreiro”, “Cabeça de eternit”) e formas fixas (“Soneto do terror racial” e “Maré”, também soneto), que encontram também sua recusa, desde os sonetos invertidos (dois tercetos, dois quartetos; em “Azeviche” e “O bar”) até a regularidade própria de “A face” ou “Mulher na galeria”, com versos em que a quantidade de sílabas métricas varia. Essa disposição seria o que o autor chama de “antiforma”: o arranjo composicional dessa pluralidade de formas faz com que mesmo a forma fixa se veja dispersa e desestabilizada pelo conjunto. É também aí que o experimental se realiza, levando a forma até seu limite: como a anatomia em Basquiat. 

Sendo dele a influência “pictórica neo-expressionista”, ela a reconhecemos sobretudo no último conjunto, composto pelos poemas “Templo melanodérmico”, “Circunvolta atemporal” e “O vencedor”. Nesses três poemas, a figuração na página traz novamente a experimentação formal, que reencontra os limites da antiforma pela rasura ao título do conjunto e pelo título dos poemas, transformado em nota de rodapé. Essa destituição do título lembra o “Red Rabbit”, de Basquiat, em que o título da pintura não parece nomeá-la: a figura se distorce em dessemelhança a um coelho e é o fundo vermelho, não a figura. Esse procedimento poderia até se apresentar como destituição do próprio título do livro, como se seu efeito pudesse se alastrar de volta à capa e renomear a obra — mas antes, parece ser na verdade o banzo essa própria destituição, essa antiforma que risca e explode, essa “antítese heroica da vitória”.

Matheus Lima é mestre em Literatura, Cultura e Contemporaneidade na PUC-RIO

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