REZADEIRA

Por Davi Nunes

Conto inspirado nas vozes e histórias das rezadeiras de Cachoeira-Ba Dona Deth, Dona Bichinha, Dona Ti, que vi-ouvi na mostra Voz de Iyá

Foto Silviafoto: Silva Leme

 

Minha mãe que me ensinou a rezar. Reza daqui, benção de lá. Aprendi. Passei a vida toda rezando. Rezadeira… Meu ofício, num sabe?  Curei gente de tudo que é lugar desse país. Do mau-olhado ao quebranto do corpo e da alma.  Foi assim. Não agravando a todos, tinha gente boa e gente ruim. Meu pai Omolu que tava na frente, me ajudando a colocar reza, proteção e cura nos corações das pessoas. Eu nasci aqui mesmo em Cachoeira, foi em 1917. É… Minha menina, tenho 101 anos, tem gente lá pros lados de Santo Amaro que tem mais. Em São Brás, na verdade. Ela tá viva ainda, acho; Dona Mocinha. Sambadeira das boas. Dois anos mais velha que eu. Converso com ela em reza, sempre.  Somos duas “mulé” de fé. A gente vive bastante tempo nesse recôncavo, sabe? Sabemos cuidar do espírito, menina. Mesmo que o mundo seja duro como um cão. A gente cuida do ori, vive e samba também. Nasci no mocambo antigo aqui no Caquende, não é isso que você que quer saber? Tudo aqui era quilombo, e quilombo sempre é, né mesmo? E fui logo banhada pelo Paraguaçu, naqueles lados onde hoje é a Faceira. Acho que esse banho foi a minha primeira reza, a benção, o axé que mãinha me deu, logo quando cheguei nesse mundo. Eu tive alguns filhos, em sua maioria já morreram. Vivi tempo demais. Atravessei o tempo deles, me entende? Mas ainda tenho dois que restaram, uma mulher e um homem, que já tem idade também. Tive oito no total. Naquele tempo era assim. Me lembro quando comecei a amamentar Toinho, ele não engordava. Toda noite quando ia dar de mamar, uma cobra sugava o meu leite, e, pra Toinho não chorar, a bicha deixava ele mamando a sua calda. É verdade. Tive alguns filhos que se foram assim, de rabo de cobra – mas com meu Toinho, não. Eu descobri. Contei pra todo mundo em Cachoeira, ninguém acreditou, mas rezei e numa noite consegui matar a cobra. Fiquei mais forte na reza. Consegui desfazer nó-de-destino, que é o pior nó que a pessoa pode ter na vida e sambei por esse recôncavo, filha. Ando com fé até hoje. A fé manda embora ”as coisas ruim”.  Você sabe, né? Num faiá.

Davi Nunes é mestrando no Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem- PPGEL/UNEB, poeta, contista.